Comentei esses dias no Facebook que, diante da pergunta “Como você está?”, eu havia me habituado a responder “Caminhando…” - uma resposta que tem a vantagem de ser verdadeira, autoexplicativa e aberta a interpretações.
(Meu pai costumava dizer que a definição de “chato” é aquele que, ao ser perguntado como está, explica. Uma pergunta dessas não é pra ser respondida de verdade, afinal. O fato de meu pai ser psicólogo só tornava a piadinha mais infame.)
Então, a resposta “Caminhando” deixava a abertura necessária para o interesse, a imaginação e as boas intenções de quaisquer interlocutores, sem forçar a amizade. Entretanto, comecei a me perguntar sobre esse “caminhando”, “tocando a vida”, “tocando em frente” - certamente ando devagar porque já tive pressa, mas apesar de já ter chorado demais, não sei se dou conta de levar um sorriso, Almir Sater. Mais provavelmente, só umas piadinhas infames mesmo, afinal, sou filha do meu pai.
No último mês, voltei ao Acre, e poderia dizer que retomei elementos do cotidiano, entre as atividades (intensas por causa de um Festival) de minha igreja, a manutenção da casa e o trabalho acadêmico. Hoje mesmo dei aula remota, como fora na fase aguda da pandemia, há cerca de dois anos e uma eternidade atrás. Pessoas na turma da UFRGS chegaram a comparar a experiência da enchente no Rio Grande do Sul (que de fato ainda não acabou) com a da pandemia (que também não acabou), e essa sensação de tentar retomar as coisas na esperança de que o pior já passou, e bota o governo Bolsonaro nessa conta também. Ontem escrevi para as turmas de Ciências Sociais da Ufac no grupo do whatsapp, que estão tentando se reorganizar com a greve que pode ou não ter acabado, que era preciso um pouco de pragmatismo com o curso, evitar trancar disciplinas e deixar para fazer trabalhos na última hora, porque afinal o calendário acadêmico já sofre outras interferências e a expectativa de se formar pode se alongar de modo desanimador. Luto, enchente, greve, e outros sentimentos e atribulações à parte, talvez seja possível dizer “caminhando”. Em um mundo que cada vez é outro, só é possível caminhar se formos descobrindo novamente nossos passos e reinventando nossos caminhos, por isso escrevi no Facebook que estava “descobrindo meus passos”, uma resposta mais acurada e mais honesta, porque denotando outro tipo de resolução, que “caminhando”. Sabendo ainda que logo retorno ao Rio Grande do Sul para lidar com questões familiares e acadêmicas, como um ponto de reforço na costura, mais do que um acabamento. Hoje me sinto mais forte, se não mais feliz, grata pelo que foi possível fazer; e só levo a certeza de que muito pouco eu sei, eu nada sei.
Hoje a aula foi sobre os dois primeiros capítulos de Mimesis and Alterity: a particular history of the senses, livro do antropólogo australiano Michael Taussig que virou minha cabeça quando eu estava na graduação e tinha jogos e jogadores de Roleplaying Games como objeto de pesquisa. Eu o li pela primeira vez há quase 20 anos, em uma aquisição ousada de um livro importado por uma bolsista que ganhava R$300,00 por mês do CNPq e decidia se ia jantar no bandejão ou um cachorro quente. Esse livro merecia muitos e muitos textos aqui no substack. Mas a minha maior relação afetiva é com a definição que Taussig busca em Walter Benjamin de que a capacidade de produzir e reconhecer semelhanças é parte de uma compulsão de tornar-se e comportar-se como algo diferente. Mimese e alteridade em constante tensão dialética, precipitando-se uma na outra. Para mim, é uma definição revelatória do encanto que até hoje os jogos de RPG trazem e ao mesmo tempo uma libertação das limitações que o uso da noção de identidade frequentemente traz. (Noção na qual eu havia investido, à época, ao ter nomeado meu projeto de iniciação científica como “A construção da identidade RPGista”, embora já buscasse em Mauss uma discussão sobre “noção de pessoa” que trazia desestabilizações).
Em entrevista que fizeram com Taussig, Els Lagrou e Rodrigo Toniol aproximam as propostas de Mimesis and Alterity com a antropologia simétrica e os devires-outros que se tornaram onipresentes alguns anos depois, e acho que é uma aproximação frutífera. Por outro lado, acho que Taussig tem uma coisa sensória e sensual na escrita dele, no modo como apresenta dados etnográficos seus e de outrem com reflexões benjaminianas e do campo das artes, que busca promover uma desestabilização, uma vertigem para além do que chamaríamos de análise, de explicação, e que é algo raro. Eu tenho certeza de que o modo como escrevi minha dissertação de mestrado, sobretudo o primeiro capítulo que é etnográfico, é profundamente afetado por Taussig (o Mimesis e o Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem, do qual leremos um trecho na aula da semana que vem). É uma leitura perigosa, talvez.
Dar aula sobre textos e autorias que eu amo desvela o caráter autobiográfico do programa de disciplina que construí. É também uma experiência de mimese e alteridade, de entrar em contato e deixar-se contaminar pelo outro e assim tornar-se, devir. Sobretudo pelo que desperta em estudantes e suas próprias similaridades e contágios com os textos. Decerto, uma cura para narcisismos e autoabsorções que capturam almas e deixam rastros destrutivos dentro e fora do mundo acadêmico. É a descoberta de passos entre caminhos familiares e novos, outros e nossos.