Arcoíris e formatura de cordel
Formar uma turma é nunca saber ao certo se a gente acertou ou não, mas torcer pra dar bom
No final do mês passado, eu escrevi esse texto rabugento comentando que o cerimonial da universidade havia me pedido que enviasse o discurso de paraninfa da formatura de Ciências Sociais, antecipadamente e dentro das especificações de formatação. Contei também que meu aluno perguntou se eu preferia que utilizassem o pronome neutro comigo e eu aceitei, não apenas como autorrespeito, mas como desafio. Ao ler o texto por e-mail, um amigo comentou que queria que eu narrasse como foi a formatura. Cá estamos. hehehehe
Estava eu pensando em qual papel desempenhar a formatura das turmas de bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais e qual a fachada a construir, como diria nosso amigo Erving Goffman. Vou de sapatão caminhoneira, de menininha, de senhoura, vou básica, vou montade, vou de pijama? Como usamos na cerimônia uma toga de tecido sintético destinada a nos desidratar e anestesiar ao longo da cerimônia, qualquer que fosse o meu figurino, não ia aparecer. Eu, no espírito sapatão de sítio Do It Yourself e de alguém que gosta de reality show de maquiagem e body paint (Glow Up, Skin Wars), havia ido ao shopping procurar umas sombras e delineadores para fazer uma make para a formatura que fosse meio drag light. Light porque eu não dou conta de usar maquiagem pesada no calor infernal que está fazendo aqui, apesar das breves friagens que tivemos. Eu não costumo usar qualquer maquiagem e as poucas coisas que eu tinha estragaram na pandemia por falta de uso. Nas lojas do shopping, foi um pouco difícil convencer as vendedoras que eu não queria sombras em tons róseos ou amarronzados, mas o mais coloridas possível. Consegui comprar três estojinhos meio vagabundos que, combinados, tinham as sete cores pra fazer a sombra arcoíris que eu tinha achado no Pinterest. Testei fazer eu mesme, com os pincéis que eu uso para aquarela e guache (porque obviamente esqueci de comprar pincéis de maquiagem), e mandei pra um alune no fim de semana anterior à formatura, quase meia-noite. Elu me responde: “oi profe, que lindeee, eu acho que você deveria usar hein, combinou super. USAAA, vai ficar tudo” para em seguida me contar que estava voltando do interior com colegas de trabalho e o carro capotou, quase matando todo mundo. “ok, perdão cortar o barato da pride make” Elu completou. Eu tive três pequenos ataques cardíacos, mas obviamente não demonstrei, e fiquei conversando para saber se estava tudo bem mesmo, no final, ninguém se feriu muito. Elu aproveitou para me avisar que não iria à aula no dia seguinte. Claro.
De fato, na semana de recepção aos calouros e calouras na qual a galera veterana aproveita para dar O perdido nas aulas, ninguém apareceu mesmo. Recolhi os cacos da minha autoestima docente e mandei um e-mail melancólico para terapeuta à guisa de sessão, e terapeuta me respondeu com um e-mail que eu até agora não entendi, mas que não é o assunto desse texto.
Nesta segunda-feira finalmente me encontrei com minha turma de Estágio Supervisionado II. Essa turma em particular me anima, são pessoas interessantes e - o principal - com o senso de humor necessário para encarar as 135 horas que envolvem as atividades de estágio nesse semestre. Na turma, tem três figuras que são totalmente do Vale, para usar uma expressão do pleistoceno, ou queer, para usar um estrangeirismo que eu aprendi a traduzir como cuír. Duas delas absolutamente arrasam em termos de maquiagem. Uma é o alune que sofreu o acidente. Outra é o alune que passa todas as aulas trabalhando em suas próprias aquarelas, e que faz oficinas de arteterapia aqui em Rio Branco. Chegou com uma make elaborada para a aula, que eu prontamente elogiei, e já fiz o recrutamento para me maquiar no dia seguinte, dia da tal formatura. Elu se empolgou, topou e trocamos ideias. Ontem afinal, em meia hora, sentados no chão do mezanino do Teatro Universitário, eu já suando na toga como um camelo em vias de se aposentar da vida beduína, fizemos os arcoíris nas minhas pálpebras. Uma colab discreta afinal, mas efetiva. No céu de Rio Branco, papai Oxumarê fez seu próprio arco-íris, majestoso.
Haviam me avisado, somente na véspera da formatura, quando meu discurso já estava pronto, que apenas uma das paraninfas dos três cursos formandos - psicologia, licenciatura em geografia e ciências sociais - seria sorteada para fazer o tal discurso e que justamente fui eu a sorteade. Eu ri. “Vão ter que me aguentar”, pensei. Como não ia ter o menor efeito fazer o discurso em comic sans, eu havia decidido fazê-lo em rima. Um pouco de afeto, um pouco de deboche ao protocolo. Brinquei com amigos que só faltava o beat box, mas eu não sei manter o ritmo de um slam. Fiquei na curiosidade de saber se achariam bonito, achariam graça ou se incomodariam. Acho que no final houve as três recepções, mas a maior parte das pessoas achou bonito. Minha coordenadora, homenageada da turma, que escapou da toga e estava em um lindo vestido verde (gente inteligente é outra coisa), disse que era um cordel. Gênero que sem dúvida me é mais familiar. Gostei da ideia de ser um cordel. Poderia tê-lo ilustrado com desenhos estilo xilogravura, mas vou descansar dos pinceis por uns dias, depois do imenso painel junino que eu pintei para a igreja e da aventura das makes.
Segue o texto do discurso, pra quem tiver curiosidade.
Discurso de formatura – Ciências Sociais
17/06/2025
Profe Dre Ana Letícia de Fiori - paraninfa
Peço a benção e a licença daqueles que são maiores e reverenciados, Deus, deuses, orixás, ancestrais e encantados, todos os que por alguém são respeitados, aos mais velhos e aos mais novos, aos mundos e seres de todos os povos. Boa noite a todas as pessoas presentes e as amizades ausentes. Fiquem tranquilos, este discurso já passou por prévia censura, a fim de prevenir polêmicas ou críticas muito duras. À mesa de notáveis minhas saudações, colegas da reitoria e das coordenações. Salve, docentes, servidores e homenageados de Geografia, de Psicologia e suas turmas a se formar. Agradeço o privilégio de sua companhia nessa hora e lugar. Meus ternos cumprimentos aos familiares, amigos, mães e pais. Todos que partilham aqui nomes. A eles, elas, elus e demais pronomes. E minhas vigorosas felicitações à turma de Ciências Sociais.
Turma esta compósita, diversificada. Uns que se formam no tempo mínimo, outros com mais longa caminhada. Estudantes que optaram por bacharelados, com caminhos profissionais não de antemão traçados. O que é parte da dor e da delícia das humanidades, tão cheias de possibilidades. Tão essenciais, tão menosprezadas, em busca de posições remuneradas, que empreguem investigações sistemáticas e fundamentadas, e não apenas senso comum e opiniões mal embasadas. Para compreender e lidar com toda sorte de questões sociais, sejam nas instâncias mais oficiais, governos e aparelhos do estado, sejam aqueles que estão “do outro lado”, a sociedade civil e os movimentos, processos longos e a irrupção de eventos, trabalhadores e agentes culturais, e também os povos tradicionais. Aí trabalham cientistas sociais.
E há quem optou pela ciência política, investigar o mundo do poder de maneira crítica. Estado, regimes de governo, partidos e eleições, relações internacionais, tempos estáveis e revoluções. E há quem optou pela sociologia, o contemporâneo sob escrutínio, o social é seu domínio, os mundos do trabalho e da violência, o capitalismo em eterna incongruência. E há quem optou pela antropologia, a investigar os múltiplos mundos vividos, as práticas e os saberes, as crenças e os fazeres. O que se costuma chamar cultura.
E há estudantes que optaram pela licenciatura. Escolheram para si a tarefa impossível do magistério, que traz consigo aquele enorme mistério, de que ser professor não é ensinar, mas de repente aprender. E esta opção exige luta constante, sem temer. Em defesa da educação pública, gratuita e de qualidade, pilares inexoráveis da sociedade. Em defesa de um ensino médio que forme com civismo, e não apenas seja propaganda do neoliberalismo. Contra modismos e fáceis saídas, contra precarizações desmedidas. Em defesa dos direitos humanos em sua mais completa acepção, contra estigmas, violência e exclusão. Pensar raça, gênero, classe, corpos, sujeitos, capacidades, pensar diferenças, lutar contra desigualdades.
Esta noite, aqui nesta solenidade, lembro-lhes que nós cientistas sociais não temos a pretensão da neutralidade. Nosso fazer é de uma ciência não básica e não aplicada, e sim de uma ciência fundamentalmente implicada. O cenário à frente não é dos mais animadores, e não podemos ser meros expectadores. Nossa profissão tem exigências éticas, ciência e política em relação dialética, ou outra forma de composição, que envolve ter consciência de sua própria posição, nas análises produzidas, e das relações e consequências ali envolvidas, ao pesquisar junto a outros sujeitos, responsabilidade que parte de e envolve mais que respeito. Enfrentamos hoje ameaças constantes aos direitos indígenas e das populações tradicionais, violações e violências, segregações socioespaciais, dos que moram nas periferias, e de outras tantas minorias, e se nos acusam de fazer ideologia ao escrutinar relações de poder, é porque não podemos nos dar ao luxo de nos conceber como externos a estas relações, somos sujeitos envoltos em tantas conexões. Fazer ciência é enfrentar críticas fundamentadas, que levam a análises aprimoradas, mas também combater o negacionismo, que tenta nos arrastar para o abismo, não apenas da falta de evidências, mas do que é fundamental para as ciências, a capacidade de avaliar teses e argumentos, mantendo um grau de discernimento, que envolve rigor e disciplina de pensamento. Para tantos debates hoje fundamentais, o Acre é o centro do mundo, é preciso ser enfática, pois a crise climática, que é a grande crise cosmopolítica, envolve problemas muito locais, como as alagações e queimadas, os desvarios das empreitadas, de um programa nada confiável, de zona de desenvolvimento sustentável, o mote do progresso tão sacro, que tenta empurrar a Amacro, movido a grilagem e emendas parlamentares, que ignora questões elementares, das dinâmicas socioambientais, às quais nos atentamos, cientistas sociais.
A todes vocês eu desejo sorte, firmeza, fé na vida. Que a formatura lhes seja apenas o ponto de partida. Desejo que a vontade de aprender sempre permaneça, e que a curiosidade diante do mundo sempre floresça, pois as Ciências Sociais não são feitas de certezas, mas de boas perguntas. Lembrem-se que nossas cabeças pensam melhor juntas. A pesquisa e o diálogo serão sempre fundamentais, desejo-lhes sabedoria e criatividade, minhas e meus colegas, cientistas sociais. E às turmas de geografia e psicologia, papo reto nesse assunto, vamos manter a parceria, tamo junto.
Foto de Patrícia da Silva, amiga querida e profa da Psicologia
Sensacional 👏 que sorte desses formandos.
geeente, o tanto que eu amei 😍