O ritmo do mundo tornou-se a respiração de minha avó. Uma nota aguda de inspiração, outra mais grave de expiração. Arfante, ligeira, ao mesmo tempo prolonga sua vida e a abrevia. Respirar é um paradoxo. É a comunicação que nos resta. Uma nota aguda, uma grave, o subir e descer de seu peito, os lábios ressecados e a boca entreaberta. Som que expressa dor enquanto comunica vida. Na paisagem sonora do hospital, ouço apenas o que me contam as notas gemidas por minha avó, respondo-as com um sussurro, um toque, ou um olhar que não sabe responder mais. Sinto quase como se eu existisse apenas nessas duas notas, aguda e grave, e suas pausas, como se ao habitá-las pudesse alcançar a minha avó e não deixá-la tão sozinha. Rezo para que outros sons inaudíveis a alcancem e a aqueçam, distraindo-a da dor que nem a morfina que goteja pode silenciar. O nome de minha bisavó, falecida além-mar há mais de seis décadas, está escrito na placa de identificação do leito, trazendo-a para a cabeceira de sua filha mais nova. Estamos em espera inversa, minha bisavó e eu, cada uma de um lado da cabeceira do leito, cada uma de um lado da soleira da morte, ambas a zelar a passagem de minha avó, no passo lento, uma nota aguda, uma nota grave, de sua respiração.
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todo o amor possível, ana