Segunda-feira fui com dois amigos assistir Aftersun no Cineteatro Recreio, um espaço cultural na Gameleira, às margens do Rio Acre. Era feriado aqui, Dia do Evangélico, e me permiti largar a pilha virtual de trabalhos de estudantes para assistir um filme fora do grande circuito comercial. Havia visto algumas pessoas comentando sobre o filme nas redes sociais, e sabia que abordava a relação pai e filha, tendo como pano de fundo a depressão. Talvez por assumir a tristeza e a tragicidade, o amigo que assistiu ao meu lado passou o filme tenso, esperando uma um acontecimento terrível e abrupto que servisse de amarração à narrativa fragmentada. Uma expectativa que o fez sofrer conforme o filme intercala imagens das gravações da câmera VHS - manipulada por Sophie (Frankie Corio), a menina escocesa de 11 anos que passa as férias em um hotel na Tuquia com o pai Callum (Paul Mescal) -; dos momentos juntos e separados de ambos os personagens; flashes de uma rave em que Callum por vezes se perde em luzes estroboscópicas e corpos efervecentes; e de Sophie adulta, cuidando de um bebê e acompanhada intimamente de outra mulher.
O filme não se entrega a este tipo de expectativas fáceis, entretanto, costurando a tensão por caminhos que se valem mais do tempo dilatado entre hesitações e pausas, o tédio e o desespero surdo com o qual Callum se debate para estar em férias com sua filha, que por sua vez inicia a puberdade entre o deboche tímido e certa graciosidade, afastando-se das crianças que brincam na piscina, mas ainda sem pertencer ao mundo dos jovens com quem joga sinuca e a quem observa flertando entre si.
Mais do que pela chave da tristeza, o filme aborda a depressão pelo tema da presença. As gravações que Sophie faz, Callum revisita em momentos sozinhos no quarto do hotel como a conferir seus êxistos e falhas no exercício da paternidade e na costura da relação com a filha, os legados que deixará em sua ausência. Sophie as revisita também, adulta, em breves momentos do filme, revelando que esta ausência não é o oposto da presença, mas sua continuidade em forma de enigma e de saudade.
Callum, sabemos em algumas entrelinhas, embora se recuse a voltar para a Escócia, terra que deixou e à qual sente jamais ter pertencido, não parece ter outro enraizamento. Deixa-nos saber que está em dificuldades financeiras e sem estabilidade profissional. Presentifica-se nessas férias (derradeiro encontro?) e nos telefonemas de orelhão com a mãe de Sophie, a quem declara amar mas não está relacionado. Uma presença sempre em risco, postulando perder-se em dissociações melancólicas que Sophie capta e esforça por entender e acolher, no limite de sua maturidade e da sua posição de filha, às vezes apenas aturdida. Presença que se perde também no esforço quase eufórico de manter-se presente, dançando na pista com a filha ao som de Under Pressure (justamente!) na despedida das férias, ou em uma fuga para um encontro sexual escondido com um homem em um canto do hotel, que deixa marcas no corpo, e faz esquecer-se da menina.
Uma presença que se esforça pelo estar, até o último momento, na despedida de Sophie no aeroporto. Deixando-a, já ao final do filme, Callum está em um corredor neutro e vazio, em um não-lugar mais abstrato que o próprio aeroporto, voltando para a rave que é menos uma memória ou um lugar, e mais este estado mental cacofônico que recobre as depressões e nos impede a presença.
Talvez seja possível escrever que o filme é evocativo, instigando sensações que permitem integrar-se à memória e a imaginação das personagens, sem explicitar muito, mas sendo ao mesmo tempo cru e delicadamente honesto nos momentos em que Calum se abre para Sophie, respondendo a ela sobre seu aniversário de 11 anos (a idade que Sophie acaba de atingir). Eu colocaria de outro modo, aproximando o filme das construções que faz, por exemplo, Virgínia Woolf, outra especialista em depressão, sobretudo nos movimentos dos personagens de As Ondas, quebrando-se sobre si mesmos. Calum o faz, em sua batalha interna em suspensão, no braço quebrado do início do filme que afirma não saber como machucou, nas inconfissões sexuais, nas rupturas da fachada necessária a se manter em meio aos rugidos da depressão, na luta do cuidado com a filha, sobre quem reaplica o protetor solar com o zelo ausente de outros aspectos de sua vida. Sophie comenta gostar de saber que estão sob o mesmo sol, mesmo com a distância espacial de suas vidas. Mas, em um fugaz momento, deitada na cama do quarto de hotel, a descrição que a própria Sophie faz do que está sentindo é um retrato estarrecedoramente acurado da própria depressão de Calum, mais assustadora do que a puberdade na prospecção da vida adulta. Os traumas de Sophie serão diferentes dos de Calum, outras presenças e outras ausências, outra depressão que permitirá outra parentalidade.
Saí um tanto dolorida do cinema, participando também dos flashs de raves de Calum, ao reencontrar a luz do sol poente às margens do rio. Mas grata pela experiência partilhada.