Segunda-feira, 15 de julho, completou 5 anos de minha mudança para Rio Branco depois de ter sido aprovade em primeiro lugar no concurso para professore de antropologia da Universidade Federal do Acre. “Passa muito rápido”, disse um colega da Ciência Política, quando mencionei o fato na apresentação do curso aos ingressantes, na terça-feira. Talvez cinco anos de casa já me tornem não mais uma pessoa recém-chegada, novata, ou uma “ave de arribação”, como dizem no Acre, um forasteiro que passa ali algum tempo e depois se vai. Não sei dizer. 2024 tem sido um ano em que fazer muitos planos não tem sido possível, e conseguir lidar com as contingências sem estar improvisando o tempo todo me traz uma autopercepção de amadurecimento, modéstia à parte. Além disso, tenho brincado ao responder às pessoas que me perguntam se eu vou “ficar de vez” no sul ou no Acre, dizendo que “minha vida não me pertence”. Citei Paulinho da Viola na épigrafe da minha tese, “não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”. Nos primeiros meses no Acre, eu relatava meus estranhamentos falando sobre Nárnia, porque afinal, se o Acre existe, para encontrar-se com ele é preciso passar por alguns portais, nem sempre dentro de guarda-roupas. E não tem como não se transformar no processo.
Esses dias uma aluna disse que eu pareço que incorporo quando dou aula, e eu dei risada ao ouvir isso. “Incorporar aqui não”, adverti, mais como uma piada interna do que qualquer coisa. Acho que dar aula tem um componente de performance que, como Richard Schechner indica em seu texto “pontos de contato entre o pensamento antropológico e teatral”, é a transformação do ser e da consciência. Tem algo de Outro em dar aula, um diferir de si que emerge com a interação com a turma e o tema de aula e, no caso de uma disciplina como a antropologia, com os autores e contextos etnográficos que discutimos. Talvez a mediação em sala de aula seja uma forma de mediunidade, de fato, se tomarmos a palavra mediação com certo rigor, e não como a utiliza o neoliberalismo educacional que, com o pretexto de dar “protagonismo” aos estudantes, esvazia e profissão e o valor docente, e sua autoria na composição de cursos e aulas.
Há muitas formas de mediação, assim como há muitas formas de mediunidade. E eu costumo advertir meus estudantes que ninguém é Chico Xavier, capaz de psicografar um trabalho em uma sentada à mesa, recebendo-o de espíritos professores do além. O próprio Chico Xavier, eu suponho, tinha seus preparos e asceses para poder fazê-lo. Preparar aulas, ler muito, montar apresentações de slides ou roteiros, é parte fundamental do meu trabalho, que só é possível porque há ainda alguma preservação da carreira docente para pessoas concursadas no ensino superior público. A realidade geral é precarização do trabalho docente: excesso de turmas; disciplinas padronizadas e com unidades intercambiáveis para se ajustar à necessidade de consumo de estudantes que também estudam de forma precarizada e que, por necessidade do mercado de trabalho, priorizam o diploma à formação; baixa remuneração e poucos recursos e financiamentos; “capacitações” pró forma que respondem a demandas burocráticas de prestação de contas e não às reais necessidades de cada ambiente educacional; e por aí vai. Fazer greve no ensino superior público - tretas e manobras de sindicatos e correntes políticas à parte - é tentar evitar o agravamento desse cenário.
Esta semana trabalhei alguns textos de Tim Ingold com a turma da pós, para começarmos a construir uma compreensão de antropologia especulativa, que eu quero aprofundar quando chegarmos à unidade sobre Donna Haraway na disciplina. No texto que indiquei como leitura básica, Antropologia versus etnografia, Ingold retoma o argumento de que antropologia é uma prática educacional, que envolve a educação da atenção e a observação dialogada na qual se aprende e desenvolve habilidades em conjunto com as pessoas, correspondendo com elas. Nesse sentido, antropologia é também o que fazemos na universidade, em sala de aula, com estudantes. Comentei com a turma que concordo com Ingold, e que seria inimaginável para mim desenvolver um pós-doutorado sem poder dialogar com pessoas interessadas em questões alinhadas às minhas. Mesmo uma pesquisa teórica, como a minha, não poderia ser um aprofundamento bibliográfico para exercícios de pensamento abstratos. Antropologia é filosofia com gente dentro, diz Ingold. Ensino e pesquisa assim se confundem, de uma maneira saudável, rica.
Se eu dissesse que estes cinco anos foram fáceis ou mesmo felizes, eu estaria mentindo. Passei, coletiva e individualmente, por muita coisa. Meu cabelo está bem mais cheio de fios brancos. Obviamente, passar pela pandemia empregade foi um alívio, em muitos sentidos, e a obrigação de pagar boletos muitas vezes é o que me faz levantar de manhã. Viver em Nárnia no antropoceno é um desafio. Mas completar cinco anos e percorrer minhas memórias docentes traz certa satisfação e orgulho. E estes sentimentos merecem ser cultivados, não apenas como forma de auto cuidado ante as muitas atribulações que nos atingem - um pouco de autoajuda não faz mal à ninguém - mas também porque nos fazem lembrar que nem toda reflexividade e autocrítica devem ser voltadas à identificação de erros e problemas, porque podem também ser gestos nos permitem enriquecer alternativas de ação e pensamento.